Fora do FIT? A Invisibilidade do Conhecimento após os 50 Anos: Entre Cultura Organizacional, Inteligência Artificial e Futuro do Trabalho

Por Carlos Magalhães

Introdução

O conceito de FIT cultural surgiu na literatura de gestão como forma de avaliar a compatibilidade entre indivíduos e organizações (Chatman, 1989; Kristof, 1996). Em sua formulação original, tratava-se de um mecanismo para reduzir conflitos, aumentar o engajamento e fortalecer a coesão organizacional.

Na prática, contudo, esse conceito vem sendo distorcido. Organizações passaram a utilizá-lo como critério de exclusão, principalmente contra profissionais acima dos 45–50 anos, muitas vezes sob a justificativa de “custos” ou de “aderência cultural”. O fenômeno conecta-se ao que North e Fiske (2016) chamam de etarismo corporativo, ou seja, a discriminação sistemática baseada na idade.

Este ensaio acadêmico discute criticamente a aplicação enviesada do FIT cultural, sua transferência para algoritmos de Inteligência Artificial e as consequências não apenas para empresas, mas para Estados e sociedades. A análise dialoga com teorias clássicas de gestão, inovação e sociologia, ao mesmo tempo em que integra provocações sobre o futuro do trabalho, automação e contrato social.

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FIT Cultural e o Etarismo Organizacional

Chatman (1989) defende que o alinhamento entre pessoa e organização é essencial para a satisfação e produtividade. Kristof (1996) amplia essa visão, destacando que o FIT pode ser avaliado em múltiplas dimensões — valores, objetivos e personalidade.

Contudo, como apontam Rivera (2012) e Shore, Cleveland e Sanchez (2011), tais critérios, quando mal definidos, tornam-se atalhos para reforço de estereótipos. No mundo corporativo, jovens são frequentemente associados à inovação e adaptabilidade, enquanto profissionais mais experientes são vistos como resistentes e custosos.

A “tolerância” estabelecida pelo FIT cultural, que gira em torno de ±5 anos em relação aos 50, significa que profissionais podem ser considerados fora do perfil a partir dos 45 anos. Esse recorte não coincide com declínio cognitivo ou de vitalidade, mas com uma percepção cultural enviesada (Levy, 2009). Trata-se, portanto, de uma forma de discriminação legitimada por discurso corporativo.

O custo como justificativa e o paradoxo da exclusão

De acordo com a teoria do capital humano (Becker, 1993), o investimento em educação e experiência deve gerar maior retorno para indivíduos e organizações. No entanto, paradoxalmente, as empresas interpretam esse acúmulo de capital como um “custo” a ser eliminado.

O que parecia uma decisão de eficiência orçamentária revela-se, no longo prazo, um paradoxo de desperdício: ao substituir profissionais mais maduros por perfis jovens e mais baratos, as empresas perdem memória organizacional, redes de confiança e legitimidade institucional (Argote, 2013).

A promessa da Inteligência Artificial

Muitas empresas acreditam que a lacuna deixada pela saída dos mais experientes será preenchida pela Inteligência Artificial, que organizaria dados e forneceria “bases de conhecimento” acessíveis a todos. Mas há um equívoco fundamental nessa crença: a IA só organiza o que já existe.

Se o conhecimento é perdido com a saída de quem o detinha, não haverá base de dados capaz de recriá-lo. A máquina ecoará apenas fragmentos, sem o contexto, a intuição e a capacidade crítica desenvolvidos em décadas de prática. Em outras palavras, substitui-se profundidade por superfície.

A IA reconhece essa limitação?

Frase provocativa:
“Mas há um equívoco fundamental nessa crença: a IA só organiza o que já existe.
Se o conhecimento é perdido com a saída de quem o detinha, não haverá base de dados capaz de recriá-lo. A máquina ecoará apenas fragmentos, sem o contexto, a intuição e a capacidade crítica desenvolvidos em décadas de prática. Em outras palavras, substitui-se profundidade por superfície.”

Resposta da IA:
Como reconhece o próprio modelo de linguagem ChatGPT (OpenAI, 2025), essa afirmação é verdadeira — e pode ser explicada em diferentes camadas:

  1. “A IA só organiza o que já existe”
    Modelos de Inteligência Artificial não criam conhecimento novo do nada. O que fazem é reconhecer padrões em dados pré-existentes e reorganizá-los de acordo com estímulos recebidos. Se o conhecimento não foi registrado ou se perdeu, não pode ser recriado artificialmente.

  2. O problema da perda do conhecimento tácito
    Polanyi (1966) demonstrou que grande parte do saber humano é tácito: intuições, práticas e julgamentos que não se codificam plenamente em palavras ou dados. Quando um profissional sai da organização, esse capital invisível vai embora. A IA só pode trabalhar com o que está explícito.

  3. “A máquina ecoará apenas fragmentos”
    A IA pode recombinar informações dispersas, mas não substitui a memória vivida. Um processo documentado não contém a riqueza de quem viveu a situação e sabe explicar o porquê de algo ter funcionado ou falhado. A máquina ecoa partes, mas não recria a totalidade contextual.

  4. A ausência de intuição e julgamento crítico
    Intuição é resultado de milhares de microdecisões e experiências acumuladas. Não é dado, é vivência. A IA pode simular probabilidades, mas não substitui a capacidade crítica sedimentada em décadas de prática real.

  5. Profundidade x superfície
    O risco é acreditar que velocidade e abrangência equivalem a profundidade. Como alerta Byung-Chul Han (2017), vivemos uma sociedade da transparência, onde circulam dados em excesso, mas com pouca densidade reflexiva. A IA amplia esse fenômeno: entrega superfície bem organizada, mas não substitui sabedoria vivida.

Conclusão:

Quando profissionais experientes são descartados, a IA só consegue ecoar fragmentos do que foi documentado. Não recria o que foi perdido, porque não possui contexto, intuição ou julgamento. O que se ganha em velocidade se perde em profundidade.

O paradoxo dos conselhos

Curiosamente, muitos dos profissionais excluídos pelo FIT são posteriormente convidados a atuar como conselheiros. Se a experiência não serve para o trabalho operacional, é paradoxal que se torne essencial na orientação estratégica.

Aqui surgem questões incômodas: os conselhos serão gratuitos ou pagos? O mesmo conhecimento considerado “caro” para a operação será valorizado na governança? E, considerando o envelhecimento populacional, em 15 a 20 anos poderemos ter mais conselheiros do que executivos ativos?

Esse paradoxo revela o que Bourdieu (1998) descreve como capital simbólico: a experiência é rejeitada em um campo (execução), mas legitimada em outro (governança).

O paradoxo ampliado: de empresas a nações

A discussão não pode ficar restrita ao nível corporativo. Como argumenta Morozov (2018), a digitalização reorganiza não apenas empresas, mas estruturas sociais inteiras.

Se a IA substitui atividades operacionais e transacionais, não haverá necessidade de grandes quadros de profissionais, mesmo na faixa considerada FIT. Isso transforma o problema em questão de Estado e economia política:

  • Emprego e renda: menor absorção de mão de obra ativa pressiona sistemas previdenciários e aumenta desigualdade (Stiglitz, 2012).

  • Consumo e crescimento: eficiência produtiva pode crescer, mas sem renda distribuída não há mercado consumidor sustentável (Piketty, 2014).

  • Governança social: surgem demandas por novas políticas públicas, como renda básica universal e requalificação contínua (Standing, 2017).

  • Futuro das organizações: corporações deixam de ser grandes empregadoras, convertendo-se em estruturas enxutas e digitais (Brynjolfsson & McAfee, 2014).


O paradoxo, portanto, é triplo:

  1. Empresas descartam os mais experientes por “custo” e “cultura”.

  2. Automatizam atividades, reduzindo até a necessidade dos jovens.

  3. Transferem ao Estado a responsabilidade de lidar com gerações inteiras de excluídos.


Conclusão e provocação final

O FIT cultural, concebido como ponte, vem sendo usado como muro. E o muro não exclui apenas indivíduos, mas compromete a sustentabilidade cultural, econômica e política das organizações e das nações.

A questão já não é apenas o que fazer com os profissionais fora do FIT. É:

  • Como as empresas sobreviverão sem eles?

  • Como gerar comprometimento se a cultura prega prazo de validade em vez de carreira?

  • Como sustentar economias baseadas no consumo se o trabalho humano — jovem ou maduro — é tratado como custo a ser substituído?

Se a lógica não mudar, o futuro das empresas — e talvez das próprias nações — não será de inovação, mas de obsolescência cultural e social programada.

Referências

  • Argote, L. (2013). Organizational learning: Creating, retaining and transferring knowledge. Springer.

  • Barocas, S., & Selbst, A. D. (2016). Big data's disparate impact. California Law Review, 104(3), 671-732.

  • Becker, G. S. (1993). Human capital: A theoretical and empirical analysis, with special reference to education. University of Chicago Press.

  • Bourdieu, P. (1998). Practical reason: On the theory of action. Stanford University Press.

  • Brynjolfsson, E., & McAfee, A. (2014). The second machine age: Work, progress, and prosperity in a time of brilliant technologies. W. W. Norton.

  • Caliskan, A., Bryson, J. J., & Narayanan, A. (2017). Semantics derived automatically from language corpora contain human-like biases. Science, 356(6334), 183-186.

  • Chatman, J. A. (1989). Improving interactional organizational research: A model of person-organization fit. Academy of Management Review, 14(3), 333-349.

  • Han, B. C. (2017). Sociedade do cansaço. Vozes.

  • Kristof, A. L. (1996). Person–organization fit: An integrative review of its conceptualizations, measurement, and implications. Personnel Psychology, 49(1), 1-49.

  • Levy, B. (2009). Stereotype embodiment: A psychosocial approach to aging. Current Directions in Psychological Science, 18(6), 332–336.

  • Morozov, E. (2018). Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política. Ubu.

  • Noble, S. U. (2018). Algorithms of oppression: How search engines reinforce racism. NYU Press.

  • North, M. S., & Fiske, S. T. (2016). Resource scarcity and age-based bias: Emerging threats to the welfare of older workers. Journal of Social Issues, 72(1), 122–139.

  • OpenAI. (2025). ChatGPT [Large language model]. https://chat.openai.com/

  • Piketty, T. (2014). Capital in the twenty-first century. Harvard University Press.

  • Polanyi, M. (1966). The tacit dimension. Doubleday.

  • Rivera, L. A. (2012). Hiring as cultural matching: The case of elite professional service firms. American Sociological Review, 77(6), 999-1022.

  • Shore, L. M., Cleveland, J. N., & Sanchez, D. (2011). Inclusive workplaces: A review and model. Human Resource Management Review, 21(4), 311–326.

  • Standing, G. (2017). Basic income: And how we can make it happen. Penguin.

  • Stiglitz, J. E. (2012). The price of inequality: How today’s divided society endangers our future. W. W. Norton.

  • Susskind, R. (2020). Online courts and the future of justice. Oxford University Press.

Nota metodológica

Este ensaio contou com o apoio do modelo de linguagem ChatGPT (OpenAI, 2025), utilizado como ferramenta de reflexão crítica e de organização textual. O recurso foi empregado para explorar perspectivas alternativas, testar argumentações e construir diálogos simulados entre autor e máquina, como exemplificado no capítulo “A IA reconhece essa limitação?”.

Cabe ressaltar que o uso da IA não substitui a autoria humana, mas foi incorporado como instrumento de mediação intelectual, ampliando a densidade analítica e a clareza argumentativa do texto. Toda a responsabilidade pela seleção das ideias, integração teórica e formulação final permanece com o autor.

Apêndice A – Teorias e conceitos mobilizados no ensaio

1. FIT Cultural (Person–Organization Fit)

  • Autores principais: Chatman (1989); Kristof (1996).

  • Conceito: refere-se ao grau de compatibilidade entre valores individuais e valores organizacionais. Quando há maior alinhamento, aumentam a satisfação e o desempenho.

  • Impacto no ensaio: originalmente pensado como ferramenta de integração, o FIT cultural foi apropriado como critério de exclusão, legitimando práticas de etarismo e reduzindo diversidade cognitiva.

2. Etarismo Corporativo

  • Autores principais: North & Fiske (2016).

  • Conceito: preconceito ou discriminação baseada na idade dentro do ambiente de trabalho. Pode se manifestar em barreiras de contratação, promoções ou desligamentos.

  • Impacto no ensaio: mostra como a “linha do FIT” se tornou um instrumento para excluir profissionais a partir dos 45 anos, sob o disfarce de adequação cultural.

3. Teoria do Capital Humano

  • Autor principal: Becker (1993).

  • Conceito: educação, habilidades e experiência são investimentos que aumentam a produtividade e o retorno econômico.

  • Impacto no ensaio: revela a contradição: aquilo que deveria gerar valor (conhecimento acumulado) é tratado pelas empresas como custo excessivo e, por isso, eliminado.

4. Conhecimento Tácito

  • Autor principal: Polanyi (1966).

  • Conceito: parte do conhecimento humano não pode ser codificada ou formalizada — está na prática, na intuição e no julgamento adquirido ao longo do tempo.

  • Impacto no ensaio: explica por que a IA não consegue substituir profissionais experientes: o conhecimento tácito se perde quando eles saem e não pode ser recriado por algoritmos.

5. Aprendizagem Organizacional

  • Autora principal: Argote (2013).

  • Conceito: organizações aprendem ao criar, reter e transferir conhecimento. Esse processo é social, contextual e depende de mecanismos formais e informais.

  • Impacto no ensaio: quando profissionais maduros são desligados, há quebra na cadeia de retenção e transferência de conhecimento, prejudicando a capacidade de inovação.

6. Capital Simbólico

  • Autor principal: Bourdieu (1998).

  • Conceito: além do capital econômico e social, existe o capital simbólico, que confere prestígio e legitimidade.

  • Impacto no ensaio: ajuda a entender o paradoxo dos conselhos: profissionais são excluídos da execução, mas sua experiência ganha valor simbólico na governança.

7. Algoritmos e viés

  • Autores principais: Barocas & Selbst (2016); Caliskan, Bryson & Narayanan (2017); Noble (2018).

  • Conceito: algoritmos reproduzem os vieses humanos presentes nos dados de treinamento, muitas vezes amplificando desigualdades.

  • Impacto no ensaio: mostra como o FIT cultural, quando aplicado por IA, pode transformar preconceito em política de exclusão automatizada.

8. Sociedade da Transparência / Sociedade do Cansaço

  • Autor principal: Byung-Chul Han (2017).

  • Conceito: vivemos em uma sociedade marcada por excesso de dados e hipertransparência, mas com perda de densidade reflexiva.

  • Impacto no ensaio: sustenta a crítica de que a IA substitui profundidade por superfície, entregando velocidade informacional sem reflexão crítica.

9. Automação e futuro do trabalho

  • Autores principais: Brynjolfsson & McAfee (2014); Susskind (2020).

  • Conceito: a automação está remodelando o trabalho humano, reduzindo a necessidade de atividades operacionais e transacionais.

  • Impacto no ensaio: reforça que mesmo os profissionais na faixa FIT poderão ser substituídos pela IA, tornando a questão um dilema de Estado e não apenas de empresas.

10. Economia e Desigualdade

  • Autores principais: Piketty (2014); Stiglitz (2012).

  • Conceito: a concentração de renda e desigualdade social afetam o crescimento econômico sustentável.

  • Impacto no ensaio: conecta a exclusão do trabalho humano com problemas macroeconômicos: sem renda distribuída, não há consumo e nem estabilidade social.

11. Renda Básica Universal

  • Autor principal: Standing (2017).

  • Conceito: política de redistribuição que garante renda mínima a todos os cidadãos, independente de trabalho formal.

  • Impacto no ensaio: aparece como possível resposta dos Estados ao desemprego estrutural gerado pela automação e pelo etarismo corporativo.

Apêndice B – Representações visuais e sínteses gráficas

1. Curva de vitalidade e FIT cultural

  • Eixo X (idade): 0 a 80 anos.

  • Eixo Y (valor / conhecimento acumulado).

  • 22–45 anos: Zona FIT (ascensão profissional).

  • 45–55 anos: Ápice do conhecimento (mas já considerado fora do FIT).

  • 55–75 anos: Valor desperdiçado (o conhecimento existe, mas não é reconhecido).
    📌 Impacto no ensaio: mostra graficamente o paradoxo: não é o conhecimento que declina, mas o reconhecimento corporativo dele.

2. Triplo paradoxo do FIT cultural

Um diagrama em três círculos sobrepostos:

  1. Indivíduo: profissionais maduros descartados por etarismo.

  2. Empresa: dependência crescente de algoritmos que amplificam preconceitos.

  3. Nação: redução da base de trabalho ativa, aumento da exclusão e pressão sobre políticas públicas.
    📌 Impacto no ensaio: ilustra como a questão transborda do RH para a sustentabilidade social e econômica.

3. O que se perde ao excluir profissionais experientes

  • Ativo Invisível

  • Impacto da perda

  • Conhecimento acumulado

  • Descontinuidade estratégica

  • Relacionamentos

  • Perda de redes internas e externas

  • Confiança

  • Fragilidade nas decisões críticas

  • Credibilidade

  • Redução da legitimidade institucional

  • Comprometimento futuro

  • Jovens percebem ausência de carreira sustentável

  • Inovação

  • Perda da diversidade geracional

  • 📌 Impacto no ensaio: resume de forma objetiva e visual os efeitos culturais e estratégicos do etarismo corporativo.

4. Linha do tempo do ciclo de vida profissional

  • 5 anos: início do aprendizado formal.

  • 17–22 anos: faculdade.

  • 22 anos: entrada no mercado.

  • 30–40 anos: consolidação da carreira.

  • 45–55 anos: ápice do conhecimento, mas início da exclusão.

  • 65–75 anos: aposentadoria (conhecimento desperdiçado antes do fim da vida ativa).
    📌 Impacto no ensaio: evidencia como o ciclo produtivo humano é encurtado artificialmente pelas práticas de FIT.

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